BENTO ANTÔNIO DA BOA MORTE

O escultor de Arte Sacra

Escultor mineiro, viveu em Araxá em fins do século dezoito até 1857, quando faleceu. Em todas as expressões de sua arte, ele conseguiu não somente uma vez, mas repetidamente, beleza formal tão próxima da perfeição. Seria injusto ao apreciá-las nos esquecer que ele as fez sem o amparo das academias, desprovido de modelos em que educar o talento. Não nos é fácil remontar as origens da arte de Bento Antônio. Sabe-se ter penetrado a influência européia vinda pelas missões francesas e italianas, o que se constitui em correnteza de força circulante das quais surgiu a arte religiosa.

As suas obras contêm “a expressão da sensibilidade de ordem elevada”, sutileza de detalhes que invadem toda a imagem emprestando-lhes vitalidade, harmonia e sentimento. Das imagens que criou, uma que se destaca pela maior expressividade é a do “Senhor Morto”. Uma imagem de madeira, de 1 metro e 90 centímetros, toda feita de um só pedaço, exceto os braços que se acham ligados ao tronco na articulação escápula-umeral por um ligamento de linho, permitindo, assim, estendê-la na cruz por ocasião das festividades da Semana Santa. A fisionomia do cristo traz na placidez do morto os sinais do martírio que sofreu na cruz. A epiderme rasgada desperta em nós um sentimento de piedade pela grande dor que nos demonstra a carne malhada. Esta imagem mereceu a indulgência da Igreja, como nos demonstra a inscrição que se lê no fundo do sepulcro, em linguagem quase pitoresca.

“No dia 11 de agosto de 1824 concede o s. Revmo. D. Francisco Bispo de Castório Prelado de Guaiazes, todas as vezes que pegar-se esta imagem ganharão 40 dias de indulgência”.

As imagens de S. Francisco, S. Sebastião, N. Sra. das Dores e Senhor dos Passos, todas elas em tamanho quase natural também feitas em madeira talhada a canivete, exibem um esplendor da arte hierática que tende para o simbolismo, intelectualidade, perde o caráter internacional para revestir-se de peculiaridades locais; a arte do homem comum clássico e quase bárbara.

Nota-se em todas as obras deixadas por Bento Antônio que ele recebeu orientação de um mestre intelectual. Ao serem esculpidas foram obedecidas pelo próprio impulso, longe da vista de mestres, livre para seguir os próprios impulsos, entregar-se à fantasia agradável, que muitas vezes as encontram em algum canto inconspícuo de uma Igreja.

Queremos pensar que nesta arte se encontrava o elemento europeu que atuava na modificação das formas estrangeiras para a necessidade nossa. Contendo uma força de contorno das imagens, na sugestão da matéria, na afirmação dos traços, na afirmação direta dos valores, nada nos é conhecido de comparável com os grandes escultores do período barroco mineiro. Bento Antônio, de certo, encontrou dificuldades, sem amparo de mestres, sozinho na ânsia magnífica da perfeição vazou na madeira sua alma de esteta, até alcançar a culminância do ideal conquistado unicamente pelo seu esforço.

Em todas as suas obras, sejam as de grande expressividade ou as de pequenas, encontram-se toda a graça e a espiritualidade transcendente de uma grande religião. Todas formam um conjunto de 11 imagens: um grupo de anjos, 1 crucifixo, 2 bustos de S. João e Santa Madalena, 2 esculturas inacabadas de Santa Rita e de São Francisco. À imagem de São Domingos, trazida por ele e doada à Matriz de São Domingos em 1800, não se pode afirmar que seja obra sua, assim como a de Santa Rita, São Benedito e N. S. do Rosário, cujas esculturas não apresentam características como as obras geniais do escultor.

Bento Antônio também era pintor, deixou-nos um legado em painéis que representam cenas do martírio de Cristo, as bandeiras com gravuras de Santos e uma pintura em tábua, recortada, nas figuras do bom e mau ladrão. Nestas pinturas encontramos uma habilidade extraordinária, segurança na execução das pinceladas, seleção instintiva de linhas essenciais e dependência para o ritmo em lugar da estrutura. Os desenhos não se diferem do objetivo, variam desde a apreensão de alguns aspectos da vida, algum vislumbre repentino de visão, como no painel representando “Flagelação de Cristo”.

Se tentarmos sintetizar, relacionar em alguma estrutura geral todos os detalhes que a vista errante reassumiu, encontramos ritmos lineares, equilíbrio, harmonia de colorido.

Em que ordem colocamos este nome “Bento Antônio”?

Cada época tem uma ordem que lhe é própria, na dependência das fases temporais da sua sensibilidade.

Qual a qualidade da arte de Bento Antônio que o torna tão interessante à sensibilidade moderna, e será que ele partilha esse atributo com outros antes de sua época?

Que é que distingue essa qualidade dos padrões tradicionais que servem para julgar a arte?

A resposta, que chegará um dia, quando houver alguém que saberá colocar este genial escultor nas páginas do livro do reconhecimento, este artista que soube doar a Araxá um trabalho de amor, de dedicação e de fé.

Bento Antônio morreu num dia que não foi marcado pelo calendário, permanece, porém, entre nós através de sua crença colocada nas obras que o dignificaram.

Quase octogenário, morreu só, colhido por uma síncope, deixando-nos sua identificação com as leis de Cristo.

 

 

Texto: Lourdes Zema, artista plástica e escritora.

Fonte: O TEMPO, Araxá, n.º 340, p. 11, 25/fev./1989.